Neste artigo aprenderemos sobre o uso de transações no PostgreSQL, sendo o foco principal estudar os níveis de isolação e como o banco comporta-se diante de cada um destes. Mas antes de iniciarmos com a prática, precisamos entender alguns conceitos básicos que servem para todos os SGBDs, que é o conceito de Atomicidade.

O acrônimo ACID faz referência aos quatro princípios básicos que qualquer SGBD deve satisfazer para que possua esse título:

  • A = Atomicidade;
  • C = Consistência;
  • I = Isolamento;
  • D = Durabilidade.

Nosso foco aqui será estudar a Atomicidade, que é algo indivisível ou, em termos mais simples, execute tudo ou não execute nada.

Este princípio pode ser visto diariamente em transações bancárias como, por exemplo, quando você transfere algum valor da sua conta para alguma outra conta, é realizado um UPDATE na sua conta, atualizando seu saldo (saldo atual – valor transferido), e a conta destino, que também recebe um UPDATE de atualização de saldo (saldo atual + valor transferido), certo?

Agora imagine que são apenas dois passos: UPDATE na conta origem e UPDATE na conta destino. Se por algum motivo ocorrer um problema no segundo UPDATE (atualizar o saldo da conta destino) então todo o processo é desfeito para garantir a consistência dos dados. A isso chamamos de Atomicidade. Perceba que neste ponto, a Atomicidade e Consistência estão diretamente ligados.

Se não existisse Atomicidade teríamos sérios problemas de consistência, vejamos:

  1. João tem R$ 5000,00 na sua conta e transfere R$ 500,00 para Pedro.
  2. Internamente um UPDATE é executado no saldo de João que agora é R$ 4500,00.
  3. Um UPDATE começa a ser executado na conta de Pedro para receber os R$ 500,00 mas algum problema ocorre e uma falha é retornada.
  4. João continua com os R$ 4500,00 e Pedro não recebeu os R$ 500,00.

Veja o tamanho do problema que temos a frente, inconsistência de dados, e o pior: trabalhando com valores monetários.

Então já ficou claro que a Atomicidade garante a execução completa de um conjunto de comandos, caso contrário, tudo será cancelado. Mas como usamos tal conceito na prática? É o que veremos na próxima seção.

Transações

Transação é o sinônimo de Atomicidade no mundo do SGBD, então daqui em diante começaremos a usar o termo transação e você leitor deve entender que todo conceito de Atomicidade explicado na seção anterior aplica-se aqui de forma idêntica e o estudaremos aplicado ao PostgreSQL.

Quando tratamos de concorrência em SGBD, a primeira ideia que deve vir a mente são as “Transações”, pois estas podem garantir a execução de múltiplas threads em um mesmo instante de tempo. No PostgreSQL existem dois comandos de suma importância para iniciar e finalizar uma transação, como mostra a Listagem 1.

Listagem 1. Iniciando e parando uma transação


  BEGIN - -iniciar
  - -  comandos
  COMMIT - -comitar/confirmar
  ROLLBACK - -parar/cancelar
  END - -memsa função do COMMIT

Acima temos o BEGIN para dar início a uma transação e o COMMIT para finalizar esta transação de forma “positiva”, ou seja, persistir as alterações na base de dados. Por outro lado, o ROLLBACK também finaliza a transação, mas cancelando qualquer alteração realizada. Ou seja, qualquer comando SQL que você execute é tratado dentro de uma transação, como mostra a Listagem 2.

Listagem 2. Transação implícita


  --BEGIN (implícito)
  UPDATE conta SET saldo = 100 WHERE id = 1;
  --COMMIT (implícito)

Ao realizar o comando da Listagem 2 implicitamente você está usando BEGIN e COMMIT, isso porque obrigatoriamente todos os comandos são executados dentro de uma transação, independente do seu tamanho (seja uma linha ou mil linhas).

Para que seja possível voltar a pontos anteriores depois de um ROLLBACK, o PostgreSQL trabalha com o conceito de Snapshots, que são como “fotos” do momento atual do banco antes de iniciar a transação, sendo que esta que será “comitada” só terá sucesso se aquele determinado snapshot não conflitar com dados de outras transações, recurso que veremos posteriormente nos níveis de isolação.

A partir daqui vamos criar uma estrutura para começar a trabalhar de fato com transações e entender seu funcionamento na prática.

Primeiramente criamos a nossa tabela “conta”, como mostra a Listagem 3.

Listagem 3. Tabela conta


  create table teste.conta(
    id integer primary key,
    cliente varchar(255) not null,
    saldo numeric(15,2) default 0  
  )

Agora vamos inserir alguns dados em nossa tabela, como mostra a Listagem 4.

Listagem 4. Inserindo dados


  insert into teste.conta(id,cliente,saldo)
  values(1,'JOAO',1000),
  (2,'PEDRO',15000),
  (3,'MARIO',450),
  (4,'JOAQUIM',40000)

Finalmente vamos começar a trabalhar com transações usando nossa tabela “teste.conta”, como mostra a Listagem 5.

Listagem 5. Transação com rollback


  select * from teste.conta where id = 1;
  begin;
  update teste.conta set saldo = 120 where id = 1;
  rollback;
  select * from teste.conta where id = 1;

Na primeira linha mostramos os dados da consulta antes de iniciar a transação. Em seguida começamos uma transação e atualizamos o saldo da conta “1” e logo em seguida executamos um rollback. O resultado das execuções acima não tem nenhum efeito nos dados do SGBD, isso porque o rollback anulou todas as alterações e isso significa que o resultado do primeiro SELECT será igual ao resultado do último SELECT.

Outro recurso muito interessante do PostgreSQL é o “SavePoint”, que possibilita que salvar determinado ponto dentro de uma transação e volte para ele quando achar necessário, como mostra a Listagem 6.

Listagem 6. Usando savepoint


  begin;
  update teste.conta set saldo = 120 where id = 1;
  savepoint savepoint_1;
  update teste.conta set saldo = saldo - 1000 where id = 2;
  select * from teste.conta where id = 2;
  rollback to savepoint_1;
  select * from teste.conta where id = 2;
  commit;

Vamos acompanhar o passo a passo:

  1. Iniciamos a transação e executamos um update na conta 1, atualizando o saldo para 120;
  2. Criamos um savepoint chamado savepoint_1, assim temos agora um ponto salvo em nossa transação e podemos voltar a ele quando necessário;
  3. Atualizamos o saldo da conta 2 para o seu saldo atual – 1000 e depois executamos um SELECT para checar como ficou;
  4. Percebemos que o UPDATE que fizemos está errado, na conta 2, e queremos desfazer só ele, evitando a perda de toda a transação. Sendo assim, usamos o comando “rollback to savepoint_1”, que nos leva exatamente ao momento anterior ao update da conta 2;
  5. Agora executamos o SELECT na conta 2 e verificamos que o valor do saldo já estava como antes;
  6. Executamos o commit para confirma as alterações.

Isolamento de Transações

Até o momento as transações foram muitos úteis em ambientes stand alone, onde trabalhamos apenas com uma thread por vez, sem concorrência. Em cenários que trabalham com tarefas concorrentes a estória muda de contexto e já precisamos pensar em como isolar determinadas transações, não permitindo que uma alteração de dados na transação A afete a execução da transação B.

Os níveis de isolamento só existem porque existem problemas ao trabalhar-se com transações concorrente, e antes de vermos quais são esses níveis e como aplicá-los, nós temos que entender que tipo de problemas podem ocorrer ao trabalhar em multithread.

São três os possíveis problemas que você encontrará: Dirty Read, Nonrepeatable Read e Phatom Read. Citaremos estes em inglês para que você não fique confuso quem é quem na hora de executar os comandos.

Dirty Read

Conhecido também como “leitura suja”, é um dos piores problemas que podem ocorrer relacionados a integridade do banco de dados, sendo que a maioria dos bancos não permitem, em nenhuma circunstância, que isso ocorra. No PostgreSQL este tipo de problema nunca ocorrerá, pois a leitura suja ocorre quando uma transação A altera um determinado valor e uma transação B lê este valor alterado. A transação A executa um rollback, ou seja, não confirma a persistência dos dados alterados, porém a transação B já leu este valor “errado”.

Mesmo sabendo que esta situação não poderá ocorrer no PostgreSQL, vamos simular o que aconteceria se isso fosse permitido, como mostra a Listagem 7.

Listagem 7. Transações com Dirty Read


  --TRANSAÇÃO A
  begin;
  UPDATE teste.conta SET cliente = 'JOAO II' WHERE id = 1;
  SELECT * FROM teste.conta;
  rollback;
   
   
  --TRANSAÇÃO B
  begin
  --Vários comandos
  UPDATE teste.conta SET saldo = 300 WHERE cliente = 'JOAO';
  commit;

Ambas as transações acima devem ser executadas em instâncias diferentes, ou seja, se você estiver usando uma ferramenta como o PgAdmin você deve abrir duas janelas de consulta e executar cada uma em uma janela separada.

Imaginando que o PostgreSQLaceite Dirty Read vejamos o que aconteceria na Listagem 7.

  1. Ambas as transações A e B são iniciadas.
  2. A transação A executa primeiramente um UPDATE no cliente 'JOAO' mudando seu nome para 'JOAO II'.
  3. Como a transação B executa vários comandos antes de chegar no seu UPDATE, quando ela chegar neste ponto o UPDATE da transação A já foi feito e quando a transação B tentar fazer um UPDATE pelo cliente 'JOAO' nada será feito pois o nome do cliente agora é 'JOAO II'.
  4. Mesmo a transação A executando um rollback a transação B já está com o dado errado e a inconsistência de dados ocorre.

Como dissemos anteriormente o PostgreSQL não permite que isso ocorra então ao realizar o UPDATE na transação B tudo funcionará normalmente visto que houve um rollback na transação A.

Nonrepeatable read

Este tipo de problema não chega a ser um problema e alguns tipos de sistemas concorrentes, por isso o padrão do PostgreSQL é permitir que este caso ocorra, chamamos de “caso” por não considerar um problema para todos.

No Dirty Read tínhamos um dado que foi alterado e depois não foi confirmado causando uma inconsistência a uma outra transação que o lê, porém neste caso os dados alterados são confirmados, através do commit. No Nonrepeatable read dados alterados e confirmados são “sentidos” pela outra transação que ainda não foi finalizada. Vejamos um exemplo na Listagem 8.

Listagem 8. Transações com Nonrepeatable read


  --Transação A
  begin;
  UPDATE teste.conta SET cliente = 'JOAO II' WHERE id = 1;
  commit
   
  --Transação B
  begin
  update teste.conta set saldo = 350 WHERE cliente = 'JOAO II';
  commit;

Vejamos como testar a Listagem 8 de forma adequada:

  1. Executa o begin de ambas as transações para torna-las concorrentes;
  2. Execute o UPDATE da transação A para mudar o nome de JOAO para JOAO II;
  3. Agora execute o UPDATE da transação B para tentar mudar o saldo de JOAO II para 350. Você verá a seguinte mensagem: 0 rows affected. Isso ocorreu porque a transação A ainda não foi comitada e até o momento “JOAO” ainda não é “JOAO II”, se a atualização ocorresse então teríamos um caso de Dirty Read;
  4. Agora execute o COMMIT da transação A;
  5. Depois execute novamente o UPDATE da transação B, agora você verá que 1 registro foi alterado (1 rows affected), isso porque a transação A já foi comitada/confirmada.

O nonrepeatable read serve tanto para alterações como deleções, mas não para inserções que veremos mais adiante.

Phantom Read

Por fim temos o último problema que pode ocorrer em transações concorrentes, as leituras fantasmas. A lógica do Phantom Read é quase a mesma do Nonrepeatable read, tendo apenas uma única diferença: as inserções de novos registros.

Quando um dado é inserido em uma transação A e esta transação é comitada/confirmada, então este dando pode ser lido por uma transação B que ainda não foi confirmada. Lembre-se que no Nonrepeatable read nós tínhamos apenas as alterações e deleções como sendo propagadas para outras transações.

Listagem 9. Transações com Phantom Read


  --Transação A
  begin;
  insert into teste.conta(id,cliente,saldo)
  values (5,'NOVO CLIENTE',503);
  commit
   
  --Transação B
  begin
  SELECT * FROM teste.conta;
  commit;

Vejamos como funciona o Phantom read no exemplo da Listagem 9.

  1. Inicie ambas as transações com o “begin”.
  2. Execute o insert do novo registro na transação A.
  3. Execute o SELECT na transação B. VocÊ terá o seguinte retorno: 0 rows retrieved. Isso ocorre porque a transação A ainda não foi confirmada e voltamos a dizer que Dirty Read não são permitidas, seja para alterações, deleções ou inserções.
  4. Execute o commit da transação A.
  5. Agora execute o SELECT da transação B. Seu retorno será 1 linha contendo os valores do novo registro inserido na transação A: 5;"NOVO CLIENTE";503.00

Entendendo os Níveis de Isolação

Chegamos finalmente ao ponto que gostaríamos depois de explicar todos os detalhes necessários para que seja possível o entendimento desta seção. Os níveis de isolação configuram quais “problemas” podem e não podem ocorrer, é como dizer ao SGBD que você deseja que ele permita que ocorra um Dirty Read, ou um Nonrepeatable read ou um Phantom Read.

Como já vimos não é possível permitir o Dirty Read no PostgresSQL, mas é possível controlar os outros “problemas”, permitindo ou não. Usamos aspas na palavra problemas pois neste caso vale ao DBA considerar se este é um problema ou não.

Existem quatro níveis de isolamento segundo o padrão SQL, e estes não são específicos somente para o PostgresSQL: Read Uncommited, Read Commited, Repeatable Read, Serializable. Vamos entende-los:

  1. Read Uncommited: Este é o nível menos isolado e o como o próprio nome já sugere, ele permite a leitura antes da confirmação. É exatamente o caso do Dirty Read que estudamos logo no início. Neste nível de isolação todos os problemas (os 3 citados nas seções anteriores) podem ocorrer sem restrição. É muito difícil que esse nível seja aplicado na prática pois poderiamos ter sérios problemas de consistência, por isso ele é considerado mais acadêmico, apenas para fins de estudos. O PostgreSQL não possui esse nível de isolação, evitando assim que este seja configurado.
  2. Read Commited: Neste nível de isolação não podem ocorrer Dirty Reads mas são permitidos Nonrepeatable reads e Phantom Reads. Este é o nível padrão do PostgresSQL. Por este motivo que você conseguiu executar todos os testes das listagens abaixo sem problemas, pois o PostgreSQL tem como padrão o nível de isolamento Read Commited.
  3. Repeatable Readed: Aqui apenas ocorrem Phantom Reads. O SGBD bloqueia o conjunto de dados lidos de uma transação, não permitindo leitura de dados alterados ou deletados mesmo que comitados pela transação concorrente, porém ele permite a leitura de novos registros comitados por outras transações.
  4. Serializable: Este é o nível mais isolado que não permite nenhum tipo de problema (Dirty Read, Nonrepeatable read e Phantom Read).

Vejamos como ficou nossa tabela de associação: Isolamento x Problemas (Tabela 1).

Nível de Isolamento

Dirty Read

Nonrepeatable read

Phantom Read

Read Uncommited

Sim

Sim

Sim

Read Commited

Não

Sim

Sim

Repeatable Read

Não

Não

Sim

Serializable

Não

Não

Não

Tabela 1. Isolamento X Problemas

Porém ainda não terminamos, o PostgreSQL tem algumas peculiaridades em relação aos níveis de isolação mostrados acima.

Primeiramente vamos ver como usar um destes níveis dentro de uma transação, como mostra a Listagem 10.

Listagem 10. Usando nível de isolação no PostgreSQL


  --Transação A
  begin;
  update teste.conta set saldo = 120 where id = 1;
  commit;
   
  --Transação B
  begin
  set transaction ISOLATION LEVEL REPEATABLE READ;
  SELECT * FROM teste.conta where id = 1;
  commit;

Vamos entender o funcionamento da Listagem 10:

  1. Por padrão, como dissemos anteriormente o PostgreSQL vem configurado com o nível de isolação Read Commited, mas neste caso vamos mudar a sua configuração para Repeatable Read.
  2. Iniciamos as duas transações com o begin.
  3. Na transação que gostaríamos de configurar o tipo de isolação nós chamamos o “set transaction ISOLATION LEVEL REPEATABLE READ”, assim toda a transação terá uma isolação diferente das outras.
  4. Executamos o update na transação A e logo em seguida o commit.
  5. O normal do PostgreSQL seria mostrar o resultado alterado ao executar o SELECT na transação B, mas como mudamos o nível de isolação para aceitar apenas Phantom Reads, ao realizar o SELECT o saldo da conta 1 continuará inalterado.

A mesma lógica aplica-se aos outros níveis, onde o mais isolado (serializable) não irá permitir que você veja nenhuma alteração, deleção ou inserção que forem realizadas fora da sua transação, totalmente isolada do “mundo exterior”.

No PostgreSQL há alguns tratamentos diferentes do padrão para os níveis mostrados acima e isso é muito importante para que você não pense que a explicação foi feita de forma errônea:

  1. O nível REPEATABLE READ é tratado como SERIALIZABLE, ou seja, não permite leituras fantasmas.
  2. O nível READ UNCOMMITED é tratado como READ COMMITED, e é exatamente por isso que você não consegue permitir o Dirty Read.

O objetivo principal deste artigo foi mostrar o uso dos níveis de isolação no PostgreSQL, porém isso não seria possível sem antes passar por todo o caminho necessário da Atomicidade, Transação, Problemas de Concorrência para só então chegar na isolação de transação. Mostramos em detalhes como funcionam cada um dos níveis e quais tipos de problemas eles permitam que ocorram ou não.

Vale ressaltar ainda que por tratarmos estes como “Problemas” não quer dizer que de fato são problemas e podem ser encarados como soluções para alguns casos, e é exatamente por isso que os níveis de isolação podem ou não permitir que eles ocorram dependendo da regra de cada projeto em especial.