Encarando o desenvolvedor

Ética no desenvolvimento

 

Mauro Sant’Anna

Algumas profissões são notórias por seus conflitos éticos. Um advogado pode ter como cliente um assaltante, um assassino ou criar contratos para beneficiar picaretas. Médicos frequentemente mentem a seus clientes - também chamados de “pacientes” - porque agüentam sem reclamar esse e outros desaforos. Ou então são tentados a indicar tratamentos caros e de benefícios duvidosos, mas que colocarão dinheiro em seus bolsos.

 

Tradicionalmente, não associamos esse tipo de dilema ético com o desenvolvimento de software, embora ele já exista, pelo menos como boato, há algum tempo. Por exemplo, dizem que na época da inflação alta um banco “se esquecia” de pagar os juros de “overnight” uma vez por mês. Ou que uma construtora de prédios residenciais escolhia todo o mês o índice de correção mais caro dentre os vários disponíveis (IGPM, INCC, IPC etc.) e o aplicava a todos os contratos, independentemente de que índice estava estipulado no contrato. Ou que certos softwares de emissão de notas fiscais faziam a “soma errada” de forma a sonegar impostos.

 

Nestes casos é fácil dizer que um crime estava sendo cometido e que o programador era pelo menos cúmplice e que deveria então responder por suas ações. Fazer esse tipo de coisa era claramente errado, tão errado como é hoje desenvolver um software de “phishing” com o objetivo de roubar senhas de home banking. Não há realmente muito “dilema” ético, visto que a linha da legalidade foi claramente cruzada. Seria como o advogado que leva um celular ao seu cliente preso ou o médico bêbado que mata sua paciente durante uma lipoaspiração.

 

No entanto, estão surgindo na informática situações onde as coisas não são tão claras assim. Um exemplo claro é a recente divulgação que uma grande multinacional do ramo de música estaria incluindo um “rootkit” como parte de um pacote de proteção contra cópia. (www.sysinternals.com/blog/2005/10/sony-rootkits-and-digital-rights.html). Segundo a enciclopédia on-line “Wikepedia” (www.wikipedia.org), um “rootkit” é um tipo de “spyware”, que “recolhe informações sobre o usuário, sobre seus costumes na Internet e transmite esta informação a uma entidade externa na Internet, sem o seu conhecimento e o seu consentimento.” Segundo alguns blogs, este tipo de coisa seria crime em várias jurisdições e o programador estaria sujeito à pena de prisão. Levando-se em conta que os executivos teriam advogados bem melhores que os programadores, é fácil imaginar quem ia acabar na cadeia por ter “desenvolvido programas criminosos e ainda por cima enganado os executivos da empresa”. Isto não livraria a empresa de pedidos de indenizações, mas livraria os diretores do xilindró.

 

Cada vez mais encontramos softwares supostamente legítimos e de empresas estabelecidas que fazem coisas altamente questionáveis, como por exemplo:

·         Instalar rootkits e softwares potencialmente prejudiciais, como mecanismo de proteção contra cópia;

·         Informar o que você fez no seu computador a um servidor central;

·         Funcionar usando a sua conexão Internet e o seu computador, sem que você seja diretamente beneficiado;

·         Ler o seu e-mail, armazenado nos servidores deles;

·         Consolidar todos os serviços em um único domínio (por exemplo “busca.empresa.com” e “mail.empresa.com” ao invés de “servico1.com” e “servico2.com”), de forma a manter na sua máquina um único “cookie mestre”, que informa com precisão o que você faz.

 

Se isso é feito por empresas “respeitáveis”, imagine então o que os bandidos estão fazendo! Podemos imaginar que daqui a pouco teremos verdadeiras guerras nos micros. Vejam algumas das possibilidades:

·         Um software faz um programa concorrente funcionar mal ou parar de funcionar;

·         Um software descobre informação a seu respeito (como que software você tem instalado, que sites você visita e o que você comprou on-line) de forma a enviar propagandas altamente “direcionadas”. Em uma época em que bandeja de avião e mictório masculino são considerados “mídia”, isso me parece bastante razoável;

 

Todas essas coisas são fatalmente feitas por desenvolvedores, que podem acabar na cadeia por isso! Se o seu chefe pede para você imprimir dinheiro na sua impressora, a ordem dele não é desculpa. Você é criminoso.

A minha recomendação aos desenvolvedores que estiverem frente a essas situações é que simplesmente não obedeçam a esse tipo de ordem e procurem outro emprego. Caso você ache que a atividade não é um crime, mas pode estar em uma “faixa cinzenta”, minha sugestão é que obtenha ordens por escrito e armazene fora da empresa provas que permitam, pelo menos, colocar a culpa no seu cliente ou em seu chefe.

 

Mauro Sant’Anna (mas_mauro@hotmail.com) foi criado no século XX, uma época em que, por incrível que pareça, as empresas sinceramente se preocupavam em satisfazer os clientes.